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We Race As One: Nós corremos como um?

We race as one (nós corremos como um, em português) é a campanha da Fórmula 1 em prol da diversidade. A iniciativa foi tomada após a cobrança pública de Lewis Hamilton – primeiro e atualmente único piloto negro da história da F1- de um posicionamento mais efetivo da categoria e de seus colegas de pista contra o racismo. Hamilton foi o líder da força-tarefa montada pela Fórmula 1 para elevar a diversidade e as oportunidades para grupos minoritários. Além do combate ao racismo, a F1 prometeu um posicionamento contra a homofobia; o arco-íris foi escolhido como símbolo da campanha, acompanhado da #WeRaceAsOne.



Logo oficial da campanha. Foto/ Divulgação F1
Logo oficial da campanha. Foto/ Divulgação F1

No papel, a iniciativa é admirável, mas quão efetiva ela vem sendo na prática? Lewis Hamilton foi o precursor das manifestações antirracistas que aconteceram no início da temporada, com suas camisetas em apoio ao movimento Black Lives Matter, ajoelhando-se antes das corridas, e cobrando cada vez mais seus colegas, o hexacampeão mundial conseguiu apoio, mas após um protesto mais forte, cobrando a prisão dos policiais indiciados pelo assassinato de Breonna Taylor, a FIA passou a proibir o uso das camisetas no pódio, o que não silenciou o inglês. Hamilton seguiu protestando antes das corridas, seja através de suas camisas, máscaras, óculos e ao ajoelhar-se. O arco-íris, junto a We Race As One, seguiu estampando os carros e a hashtag sendo usada nas mídias sociais, porém algumas iniciativas da Fórmula 1 levantaram questionamentos sobre como a força-tarefa montada meses atrás funciona na prática.

No último dia 26, o calendário não oficial das corridas de 2021 foi divulgado, entre as pistas esperadas temos o GP do Rio de Janeiro e da Arábia Saudita, ambos circuitos polêmicos. O primeiro por violar o discurso de uma “corrida mais verde”, já que uma grande parte da Floresta do Camboatá será desmatada para que o circuito seja construindo, trazendo impactos irreversíveis para o meio ambiente. Já o circuito nas ruas de Jeddah gerou diversas críticas para a modalidade, até mesmo a anistia internacional se posicionou sobre o assunto, alertando os riscos de uma corrida no país. Há muito tempo estuda-se levar uma das provas do calendário para a Arábia Saudita, que é reconhecido mundialmente pela violência e descumprimento dos direitos humanos em grave escala. A Anistia Internacional afirma que a intenção de se levar o evento para o país do Oriente Médio está relacionada ao interesse de aprimorar a imagem internacional do país.

Repressão implacável de jornalistas, acadêmicos e ativistas pacíficos, a contribuição a devastadora guerra do Iémen, a detenção de mulheres defensoras dos direitos humanos, a tortura rotineira, execuções e a discriminação de mulheres e religiões são alguns dos principais problemas do país, que está longe do topo da lista de países pacíficos e cumpridores dos direitos humanos. Para criar um parâmetro para a situação de atraso e desigualdade do país, até 2018 às mulheres eram proibidas de dirigir, sendo o último país do mundo a ter proibições do gênero.

Felix Jekens, chefe de campanhas da Anistia Internacional do Reino Unido pede que as pessoas do esporte se façam ouvir e mostrem solidariedade com as pessoas cujos direitos estão sendo violados, e completou dizendo:

“Uma tentativa fracassada de comprar o Newcastle United, obviamente não dissuadiu as autoridades sauditas, que aparentemente ainda veem o esporte de elite como um meio de mudar a marca de sua reputação severamente manchada [...] Apesar do anúncio sobre as mulheres sauditas finalmente terem permissão para dirigir um carro sem serem presas, as autoridades recentemente prenderam e torturaram vários ativistas dos direitos das mulheres, incluindo Loujain al-Hathloul e Nassima al-Sada. Se um Grande Prêmio da Arábia for adiante, pelo menos a F1 deve insistir que todos os contratos contenham padrões de trabalho rigorosos em todas as cadeias de abastecimento, e que todos os eventos de corrida sejam abertos a todos, sem discriminação”.


Não é a primeira vez que a Fórmula 1 estuda levar o esporte para países que violam os direitos humanos, um dos maiores exemplos disso aconteceu em 19 de outubro de 1985, no circuito de Kyalami, África do Sul. Na época, o país vivia o apartheid, política de segregação racial imposta em 1946, após a posse do primeiro-ministro Daniel François Malan, que instaurou uma série de politicas de segregação na África do Sul, entre essas medidas, era negado aos negros o direito à participação na política, o acesso a apropriação de terras e a proibição do casamento interracial, além da população negra andar com uma espécie de passaporte que limitava a circulação no país, o apartheid teve clara inspiração no nazismo. E foi em meio a esse cenário que a última corrida em um sábado aconteceu, a prova chegou a ser ameaçada e as equipes francesas Renault e Ligier se recusaram a participar da etapa, Ayrton Senna e Nelson Piquet foram pressionados pelo governo brasileiro, o mesmo aconteceu com Stefan Johansson e Keke Rosberg. Os principais patrocinadores das equipes McLaren, Arrows e Lola-Haas retiraram suas marcas dos carros e a transmissão na TV italiana RAI foi cancelada.



Largada do GP da África do Sul, em 1985. Foto/ Reprodução.
Largada do GP da África do Sul, em 1985. Foto/ Reprodução.

Em 2011, outra situação semelhante, dessa vez em Bahrein. Outro país que vive uma situação de extrema repressão e violação dos direitos humanos. Há 9 anos atrás, enquanto o país vivia uma situação de guerra, prendendo profissionais da saúde e abrindo fogo contra manifestantes pacíficos que protestavam em prol do fim da guerra às drogas, Bahrein se planejava para receber o Grande Prêmio de Fórmula 1. Na época, o então vice-presidente da FIA, Carlos Garcia, defendeu a realização da prova, que já havia sido adiada devido ás condições civis do país. Garcia alegou ter visitado Bahrein e que a cidade estava pacífica, o que a tornaria apta a receber o GP.

- Só posso falar do que vi e a tranquilidade era completa. Fiz visitas oficiais e entrevistas, mas também andei nas ruas e nos shoppings, sempre com a sensação de normalidade. As pessoas compravam e trabalhavam. Nada chamou minha atenção. O que encontrei foi um governo aberto para negociações com a oposição – disse Garcia ao jornal espanhol "As".

O Avaaz, organização nacional de defesa dos direitos humanos, fez pressão para o cancelamento da corrida, recebendo mais de um milhão de assinaturas em sua petição, a organização foi atacada por Carlos Garcia, em um relatório enviado a FIA, o assunto foi bastante debatido e ás vésperas do prazo para a decisão final, o prêmio foi cancelado.

É de compreensão geral que em 1985 os debates por inclusão não eram tão acirrados como atualmente, mas a questão é que existe uma cultura enraizada na Fórmula 1 que será difícil de ser abortada. Por mais que o cenário esteja mudando, a questão financeira ainda fala mais alta na categoria, a conta é simples: o país que puder pagar a quantia exigida, receberá um Grande Prêmio, e é nesse quesito que a Arábia Saudita entra para o calendário. A Fórmula 1 garante que exige o cumprimento dos direitos humanos por parte das sedes das corridas, mas até quanto o fã do automobilismo, em especial as mulheres, se arriscariam? Quais consequências isso poderia gerar para suas vidas ao apagar das luzes?



No GP da Áustria, os pilotos protestaram contra o racismo antes da largada. Foto/ Reprodução Getty Images.
No GP da Áustria, os pilotos protestaram contra o racismo antes da largada. Foto/ Reprodução Getty Images.

Em 1985, em meio ao apartheid, a corrida aconteceu. Keke Rosberg declarou que iria correr, pois quem pagava seu salário era a Williams e não o governo. Em 2020, os pilotos se ajoelham e pedem o fim do racismo, pilotam carros com um arco-íris estampado, mas para a inclusão realmente acontecer, para que a Fórmula 1 realmente possa afirmar que corre como um só, é preciso muito mais. Não há coerência em pregar a inclusão de todos, se insiste em negociar com quem segrega o que considera diferente. We race as one é uma iniciativa linda, mas que precisa sair do paddock e surtir efeito em todas ás áreas do esporte, a Fórmula 1 é grande demais para compactuar com quem não consegue minimamente respeitar os direitos humanos, a história de uma das modalidades mais grandiosas do esporte mundial não pode seguir sendo manchada a troco de dinheiro.

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